O
robustecimento do meu ateísmo nunca foi tão intenso como no tempo em
que cursei a faculdade de biologia. Ali eu me sentia em casa,
especialmente durante as aulas que destacavam algum aspecto da teoria da
evolução das espécies. Eu sei que aceitar o evolucionismo não implica
necessariamente ser ateu. Na verdade, na universidade eu conheci muita
gente que era fã de Darwin e ainda assim cria em Deus. Contudo, o fato é
que o evolucionismo servia, até certo ponto, de apoio lógico e
científico para a negação da divindade e isso dava mais garantias ao meu
ateísmo, fazendo-me sentir mais convicto. No princípio, essa convicção
se mostrou muito forte — mesmo com aquela “voz” dentro de mim ainda
sussurrando algumas palavras de vez em quando — e eu sorria contente e
seguro cada vez que ouvia os argumentos imbatíveis da ciência em prol do
darwinismo.
Essa
segurança, porém, pelo que vejo hoje, foi somente uma espécie de
entusiasmo infantil — uma vibração tardia própria do adolescente ingênuo
que fica boquiaberto diante de descobertas fantásticas e “fatos
comprovados”, até perceber que as provas de aço que tanto o encantam não
são tão fortes assim.
Com
efeito, meu encanto pelo darwinismo começou a se esfarelar precisamente
numa aula da matéria denominada Processos Evolutivos, que tive em meu
quarto semestre. Não que essa matéria fosse ruim. Muito pelo contrário.
Nosso professor era dinâmico, divertido e dominava muito bem o assunto.
Na verdade, o fato de o professor ser tão bom só piorou as coisas pra
mim. Bem, seja como for, o que aconteceu ficou restrito a uma aula
apenas, mas foi suficiente para gerar um incômodo que persiste em minha
mente até hoje.
Ocorreu
o seguinte: durante a tal aula, o nosso sábio e brilhante mestre expôs
um quadro em que havia diversas figuras de animais conectadas por
grandes setas azuis. Essas setas indicavam a sequência do processo
evolutivo. Uma delas partia de um peixe e chegava a um lagarto; outra
partia desse lagarto e chegava a um rato; outra, ainda, partindo do
mesmo lagarto, chegava também a uma ave e assim por diante. O quadro
mostrava as setas em várias ramificações e na extremidade de uma dessas
ramificações estava a figura de um ser humano.
O
objetivo do professor não era explicar o quadro que já era bem familiar
até pra quem nunca tinha pisado uma faculdade. Ele apenas o estava
usando para se referir à cadeia evolutiva em geral, mesmo porque ficar
explicando cada passo dos processos de mutação seria insuportável para
qualquer aluno. Assim, sem se deter muito naquele gráfico, ele estava
prestes a dar seguimento à matéria quando um colega, o Luiz Carlos,
pediu pra fazer uma pergunta. Naquela época, a pergunta que ele fez me
pareceu a mais tola de todas que eu já tinha ouvido na faculdade: “O que
são essas setas azuis?”.
A
classe riu com aquela habitual indiscrição que reina no meio
universitário e o professor explicou, suspirando, que as setas,
“obviamente”, eram indicadores do curso da evolução biológica. Então o
Luiz fez outra pergunta, dessa vez não tão boba: “Não seria melhor que
no lugar das setas fossem colocadas figuras de animais em fase de
transição? Sei lá... Talvez um peixe com pernas de lagarto ou um lagarto
com asas de garça. Note aquela seta que sai da baleia e chega ao
hipopótamo. Não deveria haver no lugar da seta um ‘balopótamo’? Afinal
de contas, animas assim em mutação devem ter deixado milhares ou até
milhões de fósseis, não é? Por que não colocar a figura deles aí em vez
das setas?”.
A
pergunta tinha sido feita numa linguagem de boteco. Não era nada
acadêmica, nem tampouco soava científica ou intelectual, mas devo
confessar que ela me fez pensar pela primeira vez em algo que nunca
nenhum professor havia ainda explicado: onde estavam os fósseis dos
diversos animais que foram deixados no rastro da evolução? Considerando a
amplitude desse fenômeno e os milhões de anos ao longo dos quais as
mutações se processaram, certamente deveriam existir milhões de fósseis
de “balopótamo”, além de “lagarças” e “sapoelhos”.
Segundo
imaginei, aquela questão não representaria nenhum problema para o meu
professor. Ele tinha grau de doutorado! Sem dúvida, seria fácil pra ele
responder uma pergunta tão simples. Ah, que decepção eu tive naquele
dia! O professor, não querendo se deter no assunto (não era o tema da
aula, dizia ele), afirmou que a ciência ainda não havia descoberto os
tais fósseis (nenhum sequer!), mas que era só uma questão de tempo. Por
enquanto, disse, tínhamos de nos contentar com as setas azuis. Em outras
palavras, nossa crença na evolução estava mais baseada na tarefa de um
desenhista de flechinhas do que nas pesquisas de arqueólogos e de outros
cientistas renomados!
Tudo
isso causou certa comoção na classe. Alguns alunos ficaram irritados
com o Luiz, perguntando aonde ele queria chegar com aquelas questões;
outros, do tipo dos que gostam de ver o professor em apuros,
pressionaram o mestre ainda mais, dizendo a seu modo que se não existiam
fósseis de “balopótamos” ou outros do gênero, então a evolução era
somente uma proposta criativa e não uma realidade cientificamente
comprovada. Afinal —protestavam —, depois de tanto tempo não era para
terem achado apenas uma, mas milhares de amostras de animais em
transição.
O
professor, visivelmente impaciente, disse que cientistas modernos
estavam explicando essas “lacunas no registro fóssil” por meio da teoria
de que a evolução se deu aos saltos, sem a necessidade de elos de
transição entre ratos e aves, por exemplo. Isso, contudo, só piorou a
situação dentro da classe, pois deu a entender a alguns alunos
(inclusive eu) que os cientistas se livravam dos seus problemas com a
evolução não por meio de pesquisas, mas inventando novas teorias sem
nenhum fundamento objetivo. Aí ficava fácil pra eles!
É...
o Luiz nunca foi um aluno brilhante, mas reconheço que com um simples
peteleco ele fez estremecer a grande muralha que eu usava para proteger
meu ateísmo. Eu continuei sendo evolucionista, é claro. Que outra opção
eu tenho como ateu? Mas, agora, defendo Darwin com um entusiasmo bem
menor. De fato, hoje, como professor de Biologia no colégio, uso quadros
bem parecidos com aquele que meu velho mestre expôs naquele dia. São
quadros mais bonitos, modernos e benfeitos, mas as setas continuam lá,
fazendo ribombar na minha cabeça a pergunta chata daquele aluno
medíocre.
Li uma reportagem no site da Time,
há cerca de dois anos (em junho de 2012), que dizia que na Coréia do
Sul, país detentor do melhor sistema educacional do mundo, a teoria da
evolução foi banida dos livros escolares. Será que o Luiz andou fazendo
perguntas por lá? Não sei! O que eu sei (descobri mais tarde) é que
aquele maldito desmancha-prazeres era cristão (eu devia ter
desconfiado!), o tipo de gente que acredita em algo sem nenhuma
evidência, só porque está escrito num livro de capa preta. Agora, quando
vejo as setas nos meus gráficos, sou forçado a reconhecer que sou um
pouco semelhante a ele. Confesso que eu também acredito em certas coisas
sem nenhuma evidência, só porque estão escritas em livros... A
diferença é que são de capa colorida.
(Continua)
Pr. Marcos GranconatoSoli Deo gloria
Nenhum comentário:
Postar um comentário